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sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Escutatória

O silêncio é tolo quando somos sábios,mas é sábio quando somos tolos.
(Charles Caleb Colton)





Escutatória


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso
de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer
aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória, mas
acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante
não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não
ter filosofia nenhuma".

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as
coisas.
Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o
Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito;
é preciso também que haja silêncio dentro da alma". Daí a
dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo
dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a
gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de
descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo
que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil
de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos
estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os
índios.
Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo
silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do
piano, ficam assentados em silêncio, [...]. Abrindo vazios de
silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio,
à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala.
Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro
falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais.
São-me estranhos.
É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades.
Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não
ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas
que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se
você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso
que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa
velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que
uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo
aquilo que você falou". E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de
pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a
ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se
ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No
fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos
todos olhos e ouvidos. Aí, livres dos ruídos do falatório e dos
saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão
linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a
importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam
num contraponto.

(Rubem Alves)

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